quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Que me leixeis embarcar…

 

Diabo, o Anjo, Passageiro (moi même)

 

Diabo

À barca, à barca, houlá!aviao tap

que temos gentil maré!

Oh, que caravela esta!

Põe bandeiras, que é festa.

Verga alta! Âncora a pique!

 

Passageiro

Esta barca onde vai ora, que assi está apercebida?

 

Diabo

Pera o inferno, senhor.

Vai ou vem! Embarcai prestes!

Segundo lá escolhestes,

assi cá vos contentai.

 

Passageiro

Não há aqui outro navio?

A estoutra barca me vou.

Hou da barca! Para onde is?

Ah, barqueiros! Não me ouvis?

Respondei-me! Houlá! Hou!...

 

Anjo

Que quereis?

 

Passageiro

Que me digais,

pois parti tão sem aviso,

se a barca do Paraíso

é esta em que navegais.

 

Anjo

Esta é; que demandais?

 

Passageiro

Que me leixeis embarcar…

 

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Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente… editado e descodificado

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sábado, 4 de dezembro de 2010

Out of Africa… Inhambane

 

Nesse dia, resolvemos conhecer a região. Queríamos ver como vivem as pessoas e ao mesmo tempo explorar spots de difícil acesso.

Resolvemos fazê-lo de moto4.

Eu e a mary ocupamos uma e seguíamos um batedor, o guia, que nos levaria pelos caminhos que só eles conhecem, indicando os melhores spots para ver…

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Os primeiro quilómetros foram feitos pela costa, junto ao mar, pela areia branca da praia da barra... rumo ao farol do tempo colonial.

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Ao longo da costa podémos ver locais de uma beleza surpreendente. Lagoas naturais a fervilhar de peixes de todas as cores e tamanhos.

Passamos por inúmeras aldeias formadas em torno do imenso coqueiral plantado numa extensa área arenosa. É ocupado por casas rudimentares construídas exclusivamente com materiais obtidos no local. As paredes são forradas com folhas de coqueiro e palmeira devidamente entrelaçadas umas nas outras em forma de cruz. O resultado desse revestimento é muito bonito mas, sobretudo, garante a necessária consistência às paredes das casas. O tecto é revestido com uma camada grossa de capim em tons de cinzento…

… e, espante-se, existem lojas de venda de materiais de construção. Não vendem tijolos, nem cimento, nem vigas de aço, nem telhas para tectos, nem azulejos e loiça sanitária, nem tubagem para canalização… ali, naquelas lojas, fabrica-se artesanalmente ripas de madeiras, à catanada e paredes já feitas forradas a folhas de palmeira e fardos de capim pronto a ser colocado nos telhados das cabanas… quem quiser construir uma cabana tem lojas para adquirir o material necessário.

As aldeias surgem a espaços em pequenas comunidades, umas quatro ou cinco casas por comunidade. Existem poços de água nas cercanias das aldeias, aonde vemos várias mulheres e crianças com roupa para lavar e garrafões para encher.

A minha Mary trazia um saco com rebuçados. Em cada comunidade que passávamos ela fazia-me o sinal para parar. Esticava a mão com uns caramelos e as crianças vinham a correr, em molho, e cercavam a mota. Era para eles, talvez, o acontecimento do dia…

Surpreendentemente as mães das crianças também vinham a correr. Elas também queriam rebuçados.

Mães, com idade próxima da nossa, assemelhavam-se com os próprios filhos pequenos na excitação de obter uns caramelos e competiam com os próprios para chegar primeiro… aos magotes, aos molhos, a ver quem conseguia um rebuçado… em certas ocasiões a mary perdia o controlo da situação, tal o volume de braços entrelaçadamente estendidos…

Por cada aldeia que passávamos a Mary estendia o braço e esticava as mãos, enquanto eu conduzia a mota… em movimento, os miúdos batiam com as palmas das mãos deles na dela, com força. Um cumprimento. Todos eles, de longe, acenavam e cumprimentavam-nos com entusiasmo.

Estava um calor intenso quando chegamos à praia do Tofu…

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A noite desse dia, seria passada num jantar em plena praia da barra. Imenso marisco, imensas Laurentinas e Manikas e 2M’s de meio litro… e uma festa com dança e cantorias locais…

Um conjunto na boa tradição africana, com instrumentos artesanais produzidos localmente, ecoavam ritmos quentes da áfrica tradicional que eu adoro. Os batuques ritmavam o movimento de uns miúdos que acompanhavam a música com danças tradicionais...

Um deles, com os seus sete anitos, veio convidar a Mary para dançar. No meio deles, na praia e com uma assistência de peso, ela acompanhou as instruções do miúdo…

 

O passeio até à Duna Branca fazia-se durante a maré vaza… logo pela manhã decidimos atravessar o imenso mangual que envolve o resort rumo ao paraíso.

 

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Aquela areia tem esconde uma quantidade de moluscos inacreditável… cada passo que dávamos, cada pé que pousávamos no chão, víamos búzios a fugir, amêijoas a esguichar, caranguejos de todas as cores e feitios a atacar… e outras centenas de variedades de peixes, moluscos e animais marinhos. Tudo mexe e numa quantidade extraordinária.

Estamos habituados a pegar, em Portugal, nas conchas que vamos vendo pela praia fora. Normalmente cascas de animais que já lá não estão. Nesta praia, em Inhambane, temos alguma dificuldade em encontrar conchas sem inquilino. Os moluscos são incomparavelmente maiores e todos eles, quando se lhes pega, espreitam.

 

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Esponjas verdes que mexem e animais em forma de tubo enrolado…

 

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E Estrelas do Mar enormes, e animais em forma de flor…

 

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E bichos bola recheados de picos hiper-venenosos…

 

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… Estrelas gigantes e carnudas com as pontas que brilham…

 

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E conchas do tamanho de uma mão com feitios lindos…

 

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Voltarei, certamente, a Moçambique… um país excepcional com gente fantástica…

 

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… de paisagens deslumbrantes e românticas…

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… e pleno de aventura…

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sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Out of Africa… Moçambique… Inhambane

 

… sala de espera do aeroporto de Maputo; Um avião levar-nos-ia para norte… Inhambane situa-se a cerca de 500 km de Maputo. Se tivesse tempo teria preferido ir de Jipe…

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O avião era, afinal, uma espécie de avião… era novo daqueles a hélice, pequeno o suficiente para bater com a cabeça no tecto. Estava vento forte e o avião parecia desfazer-se em sacudidelas e abanões e não raras vezes a traseira parecia deslocar-se fazendo piões em pleno ar. Incrível.

A ‘Aeromoça’ veio ter connosco e perguntou se, em caso de calamidade, a podia ajudar… explicando os procedimentos de emergência e tal… imagine that.

Adoro estas conversas em pleno ar… dão confiança a um tipo. Eu só queria saber como se arrancava a porta de emergência… e imaginava se o casaco, devidamente agarrado nas pontas, daria como paraquedas…

Aterramos cerca de uma hora depois no aeroporto ou aeródromo de Inhambane. Fantástico.

Á saída esperava-nos a carrinha do ‘water logde Flamingo Bay’ aonde iriamos ficar.

Cá fora uns miúdos acercaram-se de mim, em avalanche como sempre, uns sete ou oito à espera de qualquer-coisinha... «ahhhh parou, tchuu ahh parou ca…, só dô ao chefi di tóduss e ele distribui yá? quem é o chéfi?» eu dizia.

Eles apontaram prontamente para o ‘chéfi’, um rapaz com uns oito anos… e ordeiramente responderam ao meu apelo… uns rebuçados, uns Meticais e pronto é sempre agradável vê-los satisfeitos a comer rebuçados…

 

A viagem até ao Lodge, cerca de 30 km, convenceu-me. Um paraíso na terra… fez-me lembrar a Costa do Sauípi no Brasil… muitos coqueiros. O primo Luís A. tinha-me dito que era assim e com toda a razão.

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Na verdade estava deslumbrado com aquela região, e ainda não tinha visto o melhor… o Oceano Indico e a inacreditável vida que ele encerra...

Inhambane situa-se no mesmo paralelo da ilha de Madagáscar…

 

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O Water Lodge aonde iriamos permanecer tinha criado em mim, por antecipação, uma certa ansiedade, uma espécie de curiosidade… como seria dormir em cima da água? Haveriam tubarões e Moreias e Alforrecas… e o Nemo andaria por ali?

 

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Em boa verdade existe tudo naquele mar… rigorosamente tudo.

A Mary andava com receio… aquele dia do mês que as mulheres sempre têm, fez-me dizer-lhe que os tubarões deveriam estar nervosos a circular à volta nossa cabana junto ao mar…  os tubarões cheiram ao longe… fresh flesh.

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A sensação de entrar naquele complexo é verdadeiramente ímpar, um mundo que não é o nosso...

Naquele local percebi uma coisa importante… no mundo ocidental, citadino e intenso, as vidas das pessoas quase têm andado desligadas da ordem natural das coisas. Já não existe uma relação entre a natureza e o ser humano. O nascer e o pôr do Sol é talvez a única excepção, a única restrição que a natureza ainda vai impondo ás pessoas do mundo ocidental. A noite para dormir e o dia para trabalhar… em horas perfeitamente definidas pelo movimento de rotação da terra, dia após dia…

Ora, naquele local tudo funciona em torno daquele eco-sistema específico. Invulgarmente tudo. E de forma bem diferente da nossa.

As marés ditam as horas para viver e trabalhar e as marés não cumprem um horário certo. Variam de dia para dia. É na maré vaza que as populações das aldeias vizinhas podem atravessar o mar e deslocar-se para o trabalho. Pode ser às quatro horas da manhã ou às duas ou às seis…

É na maré vaza que podem pescar ou apanhar marisco na praia, sustendo da sua alimentação e turismo… era na maré cheia que o catamarã podia levar-nos à ilha das conchas…

Naquele local o sol não é o regulador maior da actividade humana… é a conjugação da luz e da maré que regulam a actividade das pessoas. O relógio, naquela região, é um instrumento sem qualquer utilidade.

O Sol, naquele local, nasce no mar…

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No varandim exterior da cabana existia um acesso ao mar. De manhã, logo pelas seis horas, já estava de óculos de mergulho e barbatanas à procura de bicharada marinha… centenas de peixes faziam da estrutura da cabana, a sua própria casa.

Quando descia pelas escadinhas vinham todos ter comigo a pinicar as pernas… passou por mim a tartaruga Squirt totalmente cool e levava a Dory e o Marlin para surfar na corrente australiana... eu vi «yá bro»… não vi o Bruce, o tubarão, infelizmente; enfim, filmes e coisas de crianças que eu conheço de cor… vi o filme do Nemo com os meus filhotes umas cinquenta vezes… sem contar as vezes que adormeci.

 

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Agarrados à estrutura de madeira podia ver-se milhares de búzios e caracóis de água e caranguejos e outros bichos de concha esquisitos, uns grandes outros pequenos. Todos eles mexiam… era engraçado ver os búzios a fugir.

 

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Achei curioso estarmos dentro da cabana e, mesmo assim, podermos ver por entre as tabuas de madeira do chão, a água a correr… na casa de banho o espaço entre as tabuas ainda era maior…

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A uns quarenta metros do quarto, mar adentro, podia ver-se uma pequena ilha. Pequena na maré alta e enorme na maré vaza… não ficaria bem comigo próprio se não vencesse a corrente que se fazia sentir quando a maré estava a vazar e chegar à ilha.

Na primeira tentativa esgotei-me fisicamente e fui parar, empurrado pela corrente, bem mais abaixo. Na segunda tentativa, equipado com óculos de mergulho e barbatanas, comecei mais acima e ao mesmo tempo que ia sendo levado pela corrente nadava em direção à ilha, numa linha crescentemente enviesada… resumindo, apliquei o teorema de Pitágoras, fiz a hipotenusa em vez de fazer o cateto.

A mary venceu o receio e também nadou… com óculos de mergulho, nadamos por baixo das cabanas e dos passadiços… afinal não havia qualquer perigo… até ela ter visto uma anémona.

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Eu não vi nenhuma, mas senti umas picaditas pelo corpo. Nada de especial. Picam-me sempre, já estou habituado; em angola há uns meses, mal cheguei à praia dirigi-me para o mar. O mar estava maravilhoso, sem ninguém. Ninguém mesmo. Um mar só para mim. Entrei logo de cabeça e senti uma picada e depois outra e outra ainda… nas orelhas, nas pernas, nos lábios, em todo corpo…resolvi sair pensando tratar-se de um químico tóxico qualquer… e verifiquei que estava toda a gente na praia a olhar para mim.

Um cinema grátis. Um idiota a tomar banho num mar infestado de anémonas ou caravelas portuguesas…

 

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Anyway, a noite naquele lugar, naquela cabana é mágica… desliguei todos os aparelhos eléctricos, o frigorifico e o ar-condicionado… o som da água a correr por baixo de nós é celestial.

Ao longe ainda podíamos ouvir chapadas nas águas que os pescadores iam dando, uma qualquer técnica de pesca, na mais profunda noite.

 

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(continua)