- Bonsai-
Romário (R)- Já te disse, não me sinto nada bem aqui. Parece que não sou deste mundo. Cansa-me até.
Bernardo (B)- Mas estás nele e fazes parte dele. Porque achas que estás aqui?
R- Pela mesma razão que ali ao longe, naquele penhasco rochoso, cresce uma árvore como eu.
B- Ao acaso?
R- Um caso de mero acaso. Os ventos, as chuvas, as tempestades e demónios... tudo, enfim, conjugado, deu nisto. Uma árvore que sobrevive no pedaço de terra ínfimo para onde a empurraram.
B- Quem te empurrou?
R- Nao sei, mal vi. Senti-me projetado para fora dos campos de origem de supetão. Um dia estava a começar a botar raízes lá, no outro apareci aqui.
B- E consideras isso um acaso?
R- Não sei. Não vejo mais ninguém aqui. Estão todos lá em cima onde há mais luz. E outros lá em baixo onde há mais água. Aqui, onde a luz rareia e a água escasseia, só estou eu. Se não for um acaso é o quê?
B- Pode ser um simples caso de miopia.
R- Que queres dizer com isso?
B- Quero dizer que neste vale talvez, ouve, talvez sejas o único entalado na encosta do penhasco. Mas há muitos vales e muitas encostas. E penhascos como este há imensos. Logo ali ao lado há um grandioso.
R- Então posso não estar sozinho neste penhasco?
B- Sim. Mesmo que estejas, estás acompanhado por milhares de outras sementes que devieram árvores empurradas para outros penhascos.
R- Não as vejo bem, estão muito longe. Devo ser mesmo míope.
B- Mas eu vejo-as.
R- Viste-as?
B- Não só vi como falei com elas.
R- Como estão elas? Já botaram sementes? O que fazem? Como fazem?
B- São como tu. Fazem o que tu fazes.
R- Então mas....
B- Algumas botam sementes.
R- Eu também já botei. Várias. Mas não fiquei com nenhuma.
B- Eu sei. A maior parte cai nos campos com água abaixo, outra parte voa para os campos com luz em cima. Outras morrem.
R- As minhas que ficaram morreram mesmo aqui ao meu lado. Mas e as outras como estão lá em baixo e lá em cima?
B- Lindamente. São as mais resistentes. Lindas esplendorosas. Frontosas.
R- Porque não resistem ao meu lado?
B- Porque estás no penhasco. Tens pouca terra para ti. Muito menos para outras.
R- Então devo conformar-me, não é?
B- Longe disso. Tens de saber duma outra coisa.
R- O quê?
B- Um pouco abaixo do teu pedaço de terra há outro pedaço de terra que tu não consegues ver. E mais para o lado há ainda outro pedaço de terra que tu também não consegues ver.
R- ohh, a sério?
B- Sim.
R- Eu quero estender os meus ramos e ir lá para...
B- Não podes. Tens de poupar esforços. Mas podes fazer outra coisa.
R- Qual coisa, eu faço o que for preciso.
B- Não. Não faças nada. Estás no teu único espaço possivel. Confia na Natureza das coisas. Um dia vais ver que no pedaço de terra ao lado há-de cair um semente das árvores que estão lá em cima. E no pedaço de terra em baixo há-de cair uma semente tua que florescerá da harmonia fecundada entre ti e a que estará ao teu lado. De modo que quando crescerem para os lados e para cima, irão de encontro a ti. Só tens que ter paciência.
R- Tu viste isso noutros penhascos?
B- Constantemente. O teu dever é manter-te a postos e confiar no natural desenrolar das coisas. Estás numa escarpa em desenvolvimento.
R- Não seria mais rápido dar o litro e estender-me...
B- Podias até conseguir chegar lá. É provável que chegasses lá. Mas morrerias esgotado no esforço. Crescerias mais rápido do que as tuas raízes.
R- Não me importo de morrer na tentativa. Não me importo nada.
B- Não é uma questão de fezada. A morte é certa por esse caminho.
R- Qual é então o caminho certo?
B- Teres inteligência para não tentar mudar o que é não passível de ser mudado, paciência para lograr obter aquilo que naturalmente muda e te cai no prato.
R- Isso parece coisa de Bonsais lá do oriente. Eu sou um Pinheiro Bravo português e quero crescer até onde...
B- Onde estás, nesse pedacito de terra onde as tuas raízes estão enterradas, transformaste-te num Bonsai. Lindo por sinal. Dos mais bonitos pinheiros bonsai que já vi.
R- Achas? Obrigado.
B- Sim, fica a saber que sou eu quem te apara os ramos em excesso enquanto dormes, para manter a tua compostura e resistência.
R- Quem és tu, afinal? Porque me queres tão bem quando as sortes me quiseram tão mal?
B- Bernardo, ao teu serviço. Designado para te guardar.
R- És o meu anjo da guarda?
B- Sim, uma espécie de anjo da guarda. Eu vi tudo desde que nasceste até te agarrrares nesse penhasco.
R- Uau, então percebes tudo, inclusive a forma que usei para me manter erguido com dignidade e lançar raízes por fendas ínfimas por entre as rochas.
B- São essas que te sustentam agora. Caso contrário, as tempestades e os demónios ter-te-iam arrancado de novo.
R- Porque falas em demónios?
B- Porque nem sempre há um acaso natural. Há casos dos diabos.
R- Queres saber uma coisa?
B- Diz.
R- Eu sinto-os. Acho que são os mesmos que me empurraram para aqui.
B- Talvez um seja. Os outros vêm por simpatia. Funcionam melhor em grupos. Revesam-se para destruir.
R- Como se chama ele?
B- Já te disse não é ele. É uma legião. E todos eles, noutros tempos, estiverem muito perto de ti.
R- Porque fazem isso?
B- É da natureza deles. Atraiçoar, destruir, fazer o mal.
R- O que posso eu contra uma legião?
B- Podes muito. Manter a dignidade das tuas raízes, continuar a ser um pinheiro bonsai honesto, crente na Virtude. Os demónios querem resultados rápidos. Incitam-te a ires por ali e por acolá. Mas tu tens ido por onde o Régio ia.
R- Por onde ia esse tal Régio?
B- Estava como tu. Não sabia para onde ia, nem por onde ia, mas sabia que não iria por ali nem por acolá a que o incitavam a ir. Ia por onde a própria consciência o levava.
R- Sem stresses, portanto.
B- Sem stresses seguramente.
R- É de mim ou pareceu-me ver uma semente a pousar ali ao lado onde não vejo?
B- É mesmo. Pousou.
R- Fazes-me um favor?
B- Claro.
R- Pressiona-a gentilmente para dentro da terra para que ninguém a veja ou a incomode. Para o ano já a poderei ver, talvez.
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