Tive um pesadelo. Daqueles horripilantes.
Começava comigo a acordar, uma insólita manhã, transformado em Político. Nada
mais, nada menos que um Passos Coelho, ouviram bem. Já me tinha acontecido isso
no passado recente, com o político anterior a este, José Sócrates de sua
graça. Ambos (pesadelos) tenebrosos, em intensidade e grau.
Anyway, ao princípio, ainda estremunhado, ao descerrar as pálpebras, era
apenas uma sensação bizarra, de um estranho desconforto. Mas, quase de seguida,
o desconforto transformou-se em angústia e, ainda não tinham passado cinco
minutos, já a angústia degenerava em horror.
Apesar do grande trauma que ainda agora me dilacera e me descompassa o
sistema cardio-vascular, não resisto à narrativa. Tenho que contar a alguém,
partilhar com terceiros esta medonha experiência... Talvez haja por aí um
exorcista benemérito para esta maldição que padeço.
É verdade que eu, como referi, descerrava as pálpebras. É o que geralmente as
pessoas fazem, ao acordar e, nisso, um Bravo, incrivelmente, não difere das
pessoas.
O problema é que quanto mais as descerrava –cheguei mesmo a escancará-las com
desespero e desmesura – mais negras e densas me surgiam as trevas em redor.
Dir-se-ia que eu flutuava num aquário de trevas.
Porque, verdade verdadinha, quanto mais escaqueirava as vistas, menos via.
Mau!, pensei para com os meus botões, queres ver que acordei a meio da noite,
devastado por alguma insónia?!...
Toda a gente sabe que eu, a acordar devastado a meio da noite, prefiro uma
Sónia a uma Insónia.
Aliás, a insónia, está provado, só se instala na ausência da Sónia [isto vai
dar problemas com a Mary, ai vai vai].
Mas não nos afastemos do essencial, falava-vos daquele estranho breu. Por
causa das dúvidas, estiquei o braço na direção do candeeiro. Experimentei então
a curiosa descoberta de já não ter braço. Pelo menos, o direito. Pôrra!, pensei,
mas que merda vem a ser esta?! Queres ver que alguma brigada de traficantes de
órgãos me amputou o braço durante a noite!...
Convenhamos que uma brigada dessas é pior que um acesso de insónia. Diria
mais: muito pior. Acho mesmo que foi a partir desta conjectura que a angústia se
instalou.
Ora, em momentos de angústia eu cultivo o pouco recomendável tique de coçar
os tomates. Vocês não sei, mas a mim ajuda-me a coordenar e reorganizar as
ideias.
À falta da mão direita, desaparecida com o respectivo braço para parte
incerta, tive, naturalmente, que recorrer à esquerda para dar andamento à
deselegante função. "Tive" é força de expressão, porque na realidade também a
esquerda, verifiquei-o com amargura, primava pela ausência. Estou em crer que
esta alarmante constatação iniciou o processo de transformação da angústia em
horror. Nesta fase, se isso vos interessa, comecei a sentir aflição. Muita. O
caso não era para menos, até porque a suspeita da brigada de pilha-órgãos
agravava-se: quem rouba os braços também rouba os olhos, rouba os rins e, pior
que tudo, supremo furto, até subtrai os testículos!
Nestas alturas vertiginosas, um homem lembra-se sempre de Deus. Um Bravo, aí,
também não difere muito. Ó Deus!, carpi eu, já a ficar preocupado. Tu não ias
permitir uma safadeza dessas, pois não?!
Mas então lembrei-me das safadezas todas que são autorizadas por esse mundo
fora e um cabrão dum cepticismo teológico instalou-se-me no pensamento e desatou
a dar-me nós na figadeira. Não há nada mais nefasto para a esperança dum
indivíduo que o filho da puta dum cepticismo. Minúsculo que seja, basta uma gota
para poluir um oceano. Veneno mais contaminante não conheço. Deixei-me de rezas
e virei-me para os factos. Quando a oração não funciona, há sempre o anestésico,
e nisso a ciência é o que de melhor há para camuflar a coisa e iludir o
mamífero. Vejamos, ponderei, apelando à lógica, deve haver uma explicação
científica para tudo isto.
Atrevi-me mesmo a enunciar uma tese: se calhar, não sinto os braços porque
estão dormentes. Eureka, quase gritei. Animado por esta perspectiva, e no fiel
cumprimento do método científico, dispus-me a validar quanto antes tão promissor
enunciado. Para o efeito, bastava levantar-me, fazer um pouco de exercício, até
que a circulação de sangue se normalizasse por todo o organismo, e voltaria a
sentir os braços, coçaria os tomates, abriria os estores, a luz do dia
devolver-me-ia a visão (tudo por esta ordem prioritária), e eis-me de volta à
normalidade.
Nada, portanto, mais simples e todo aquele mal entendido se dissiparia.
Mas a minha saga de arrepiantes descobertas ainda não tinha terminado. A que
me aguardava no instante seguinte não só confirmava como agravava as anteriores.
E atirava com a ciência para o mesmo sítio para onde já despachara a religião.
Estais preparados? Já retirastes as criancinhas da sala? Tendes o testamento em
dia?
Pois aí vai:
Ao querer levantar-me – naquele salto atlético, felino, viril, que me
caracteriza e é apanágio e timbre das últimas vinte gerações da minha família,
pois, bem, ao ensaiar esse gesto quotidiano mas não obstante sempre glorioso –
pude testemunhar, em primeiríssima mão, que não só, a juntar aos braços, me
faltavam as pernas, como, por artes rasteiras de sabe-se lá que coiso demoníaco,
não restava nenhuma das minhas outrora lindas e queridas vértebras.
Pude também perceber que, em lugar da espinha dorsal com que sempre me
conhecera, equipava-me agora uma dura e convexa carapaçazinha que, a fazer fé no
design, me assemelhava perigosamente dum qualquer insecto comedor de
bosta.
Salvo erro, foi nessa altura, no preciso momento em que me vi transformado
num repugnante insecto – o político, que ultrapassei a angústia, despenquei da
aflição e mergulhei de cabeça no mal cheiroso e genuíno tanque do horror.
Imaginai-vos equipados de pelos, armadura bocal trituradora e metamorfoses
completas, essencialmente sem coluna vertebral, e dizei-me cá se não é caso para
cagaço completo?
Mais que completo: absoluto! Não vos recomendo a experiência. Do que um
Passos Coelho pensa guardo-vos para outra ocasião. O Horror, como a
melancia, requer tempo de digestão.
E se não faço agora um pequeno intervalo, é mais que certo que ainda vos
borraríeis todos pelas pernas abaixo. Isto, aqueles que não vomitassem as
tripas, preferindo o esgoto superior ao anterior.
Por falar nisso... para a segunda parte trazei daqueles saquinhos de avião. É
mais que certo que ides precisar. Dão um jeitão do caraças quando a náusea se
instala, o chão desata a girar alucinantemente e nós, à falta de Deus, da Nossa
Senhora e dos santos todos, vemo-nos sem outra alternativa que gritar ao
Gregório. Bem alto!