sábado, 19 de maio de 2012

A Restauração do Canibalismo






Bh – Ricardo ainda bem que chegaste, tenho estado a pensar em formas de resolução de alguns problemas do país.

Rb – Era suposto ser eu a pensar, mas enfim, diz lá.

Bh – Dos vários tabus civilizacionais - mais ainda que o incesto, a pedofilia, ou o infanticídio - há um que sobremaneira me repugna: o canibalismo. Mas, bem vistas as coisas, e ainda mais os tempos em que vivemos, cheguei à conclusão e sou forçado a reconhecer que é apenas mais uma prova de como sou um indivíduo preconceituoso, obscurantista, bota de elástico e até, a limite, faxistóide. E irrealista. Muito. Irrealista e obstinado. Todavia, decidi arrepiar caminho. Nunca é tarde para nos resgatarmos às nossas inibições, digo, erros.

Rb – De que falas Braveheart?

Bh- Ahh de canibalismo.

Rb – Estás doido!?

Bh – Não pá, estive a pensar no desemprego em Portugal, a nossa pátria e, enfim, de modo a compensar o nosso Portugal de todos estes meus atrasos, decidi lançar-me na proposta dum avanço tão natural quanto lógico para a resolução do problema.

Rb –hummm

Bh – Vê bem, como diz a Bíblia Sagrada, há um tempo para tudo. As pessoas, não sei porquê, tendem a ler o tudo como um quase-tudo, mas fazem mal: é mesmo tudo que está lá escrito.

Rb – e…

Bh - E se está lá escrito, quem somos nós para duvidarmos? Eu, por mim, deixei de alimentar dúvidas. E basta-me olhar à minha volta - ver telejornais, jornais, filmes, revistas, blogues e facebocas (twits é coisa que ainda não adquiri estômago para frequentar, mas, concluído o curso de faquir cibernóico que venho frequentando, lá chegarei; não percas a fé) - pois, como dizia, basta-me a realidade circundante para que uma fria e arrepiante certeza me invada.

Rb – Estou cansado Braveheart, vai directo ao assunto…

Bh – Certo. Ora, isto é como tudo: há um tempo para a subida e há um tempo para a descida; há uma tempo para a paz, e há um tempo para a guerra; há um tempo para o amor, e há um tempo para o ódio; há um tempo para o nascimento e a juventude, e há um tempo para a velhice e a morte. É uma lei eterna e imutável, esta coisa do Tempo. Por isso, capacitemo-nos: houve um tempo para a civilização e agora há um tempo para o seu contrário. Houve um tempo para erigir - e que belas catedrais e sinfonias foram capazes os homens de erguer ao céu -mas agora está na hora de ruir, de estender passadeiras rolantes de cacos, lixos e entulhos na direcção do abismo.

Rb – Tenho receio do que vem por aí pá… vá desenvolve.

Bh - Nesse sentido, nós, portugueses, temos uma palavra a dizer. Bem, agora, não será palavra propriamente dita, será mais grunhido, guincho, ronco ou ruído que o valha, mas o que quer que seja, convirá que nos represente condigna... neste caso, indignamente. Em suma, urge que não se deixe vago o nosso lugar no camarote dos acontecimentos.
Rb – Caraças pá, diz lá que coisa pensas.
Bh - Vamos então à proposta concreta. E nada modesta, porque isso de modéstia é para Gregos.
Rb – Sim…
Bh - É verdade que temos pedalado, regularmente, na retaguarda do pelotão da Descivilização. Enquanto outros povos e regiões se têm descivilizado a grande velocidade, nós, muitas vezes, e até por vergonhosos períodos, temos progredido a trouxe-mouxe.
Rb – Como assim?
Bh -Ao infanticídio dos abortos, por exemplo, só recentemente lá chegámos - já inúmeros outros, em fogoso galope e tumultuoso sprint, tinham cortado a meta há séculos. No Terrorismo, na chacina industrializada, ainda vamos a milhas. Já toda a europa e quase toda a ásia e américa descansam no hotel, saboreando as delícias da sauna e da massagem, e ainda zanzamos nós, pela encosta abaixo, perdidos. Não admira, assim, que nos olhem com desprezo e desconsideração. Por este andar, assaz lerdo e entorpecido, ainda acabamos absorvidos pelo carro vassoura da prova, e um dia destes, quando se fizer a história da Descivilização, nem uma nota de rodapé, ínfima que seja, nos prestará memória.
Rb – Sim, consigo estar de acordo…
Bh - Pois chegou a hora de darmos uma violenta sapatada no pelotão! Aproveitamos o factor surpresa, e, passarmos por estes descivilizados todos a jacto, que nem um foguetão, e encetamos uma fuga mirabolante que só terminará em glória. E uma pipa de massa pela vitória, olaré.
Rb – E como daremos nós essa sapatada inaudita, espectacular e miraculosa?
Bh - Muito simples: legalizando, melhor dizendo, restaurando o canibalismo.
Rb – Como? epá que conceito macabro – a restauração do canibalismo. Queres expressão mais infeliz e, por isso mesmo, esplendorosamente marketil que esta?
Bh – Compreendo mas…
Rb - De que forma?
Bh - É simples, lógico e moderno: vamos comer os desempregados.
Rb – Nossa senhora, que dizes?
Bh - Vê bem ricardo, já os criamos em forma de gado - como a Argentina cria bois, a austrália ovelhas ou a antártida pinguins, nós criamos desempregados, manadas e manadas deles…
Rb – sim…
Bh – … falta agora processá-los consequentemente. É um monumental desperdício de carne a que a nosa economia periclitante não se pode dar. De carne, de dinheiro e de tempo.
Rb – Braveheart, promete que não publicas isto. É uma vergonha dedicares o nosso tempo a um assunto tão, tão… ignóbil, peçonhento.
Bh – Calma pá, eu explico sucintamente: ao contrário dum boi ou dum porco, um desempregado, quanto mais tempo é deixado na pastagem, mais emagrece. Por uma razão muito simples: o desempregado não pasta. Monetariamente inibido, deprimido, socialmente odiado, abominado pela própria família, o desempregado perde rapidamente quase todo o interesse culinário. A tenrura original cede rapidamente passo a um intragável emaranhado de nervo e osso.
Rb – Sim e em que é que isso contribui para a felicidade da nacinha?
Bh – Ora, como é óbvio, quanto mais o tempo decorre nessa condição, de desemprego, pior. Mas, por isso mesmo, o potencial lucrativo do desempregado é imensamente maior que o de outros gados, quer bovinos, quer suínos, quer, até, avícolas. Porque dispensa, de todo, qualquer despesa com alimentação, crescimento, engorda e parque. Dispensa e desaconselha.
Rb – Não acredito que esteja a ter esta conversa…
Bh – Mas estás, portanto, o desempregado, por assim dizer, é uma carne instantânea: mal desponta, está logo pronta a ser processada e consumida. Esse, de resto, é o seu momento ideal de colheita e abate. Assim, convém criar mecanismos de recolha e transporte ágeis e bem organizados, entre os produtores e os matadouros municipais, de modo a que nenhuma da excelência e suculência potenciais se percam com demoras e burocracias inúteis.
Rb – Ahh estás a brincar seu malandro…
Bh – Nada disso, para aqueles que ainda sintam algum escândalo com isto, como tu, convém que se compenetrem nesta incontornável fundamentação técnica que a toda esta aparente (apenas aparente) carnificina sugere, repara: numa economia arcaica, a finalidade dos agentes é produzir bens ou serviços necessários ou desejados pelas populações; na economia moderna, de que o novo Portugal se constitui laboratório radioso e radiante, a finalidade da economia (investimento, produção e distribuição) é produzir desempregados.
Rb – Prossegue.
Bh - Ora, é admissível que uma economia tenha por destino a mera produção de lixo e desperdício?
Rb - Nem por sombras.
Bh - Os desempregados não podem, pois, ser o atestado do nosso absurdo, nem o absurdo pode ser a nossa instituição. Depois... bem, depois, é todo um admirável mundo novo de possibilidades e nichos de mercado. Até porque o desempregado não é apenas imensamente mais rentável que o bovino: é imensamente e mansamente também. Um bovino ainda oferece o risco duma cornada, o desempregado nem isso.
Rb – Uma ideia dessas só encontrará, talvez, paralelo nalguns passageiros de comboio por alturas do III Reich.
Bh – Não penses assim. Lembra-te de Euclesiastes da Bíblia. Tempo para TUDO. Mas quanto às possibilidades propriamente ditas, desde menu de atracção turística nos nossos restaurantes, hotéis e festivais gourmet, até enchidos, fumados, enlatados de exportação é toda uma panóplia de mais-valias e lucros fabulosos ao virar da esquina. E a panacéia que não será para o défice!... Um Xanax para as contas públicas!... E a maravilhosa bomba vitamínica e anti-inflamatória para aquele Instituto usurário da Segurança Social, que, justamente, deverá gerir a exploração da coisa, como só ele sabe e a sua vocação essencial e treino o exaustivo reclamam!... Ah, e nunca esquecendo, o sublime paraíso para as grandes cadeias de distribuição, para gáudio e orgasmo intelectual dos Pingos Doce todos da parolóquia.
Rb – Bem, ouve, Braveheart, idealizaste toda uma industria ao redor da coisa, mas assim de repente, e desconsiderando o mau gosto da tua ideia, por acaso até me ocorrem umas cenas pitorescas de varinas pelas ruas da da cidade, rebocando pela trela, pequenas filas de jovens recentemente postos na rua e apregoando: "Olha o desempregado fresco! Olha o desempregado fresco!...", até, confesso, quase que se me humedecem os olhos.
Bh – Estás a entrar na ideia Ricardo, até te digo, proibidos de pescar no mar, que alegria seria assistir ao ressuscitar dos nossos arrastões, lançando doravante as redes em terra !... E venham cá com quotas para o desempregado como vieram para a sardinha, que os nossos bravos governantes dizem-lhes das boas!
Rb – Pronto Braveheart, já acabaste não é, agora faz um favor, promete-me que não publicas esta conversa. Prometes?
Bh – Claro que sim.
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ps. conversa imaginária inspirada na ideia daquele dragão que já não existe