# Não me digas que já finei e nem dei por isso#
- Estás online primo?
- yá, ricardinho, quer dizer, não é bem online, é uma coisa esquisita que ainda não consegui bem perceber como funciona. Mas sempre que pensas ou diriges a mim, apareces-me imediatamente, como que por magia ou assim. Às vezes até és um bocado chato eh eh eh.
- oh, mas ainda não perguntaste aí aos espíritos como funciona a coisa?
- perguntei pá, mas esta malta são um bando de jarretas que também não sabem porque isso acontece. Mas acontece, e pronto. Ando a pesquisar ali pela biblioteca do além, que fica perto do museu dos deuses antigos, à beira da padaria dos anjos que faz uns bolos divinais, o sistema operativo que esta malta usa.
- para hackea-lo?
- oh, lá estás tu.
- mas, olha lá, o pessoal por aí tem essas cenas todas?
- yá.
- Olha, eu cá pensava que isso aí era só contemplação ao Senhor ao som da música celestial com sininhos e muitos loirinhos de cabelo enrolado vestidos em túnica branca a flutuar e a tocar harpa... uma seca, em suma.
- Nada disso Ricardo . Ainda não vi ou senti esse Senhor de que falas. Dizem que foi criar mundos noutros universos e que só deve chegar por estas bandas daqui a muitos milhares de anos. Quer dizer, é o que dizem, mas esta malta não é de fiar.
- Conta conta Pedro.
- pois aqui há de tudo e temos acesso a tudo sem restrições.
- a tudo mesmo?
- yá
- Estás a reinar. Estás a dizer que tens acesso a tudo o que quiseres?
- sim, tudo.
- gajas também.
- pá, aqui não há gajas. Nem gajos.
- gajos dispensava...
- ... a sério Ricardo. O factor reprodutivo por estas bandas não tem cabimento. Logo, não há sexos. Hello!? somos almas.
- Começo a achar esse local pouco aprazível. Menos bom, vá, digamos assim.
- pois, mas gajas, por aqui, não temos.
- E saudades, tens saudades?
- Não.
- Não?
- Não.
- Então, mas não sentes falta de nós porra.
- já te disse, tu principalmente, fora o meu irmão e a minha mãe, apareces-me a toda a hora na minha mente, porque estás sempre com essa ideia fixa de pensar em mim.
- isso incomoda-te, pelos vistos oh primo.
- não, não me incomoda nada, antes pelo contrário. O ponto é que não sinto saudade precisamente porque sempre que pensas em mim, apareces-me no radar.
- portanto, se deixar de pensar em ti, não te apareço aí nesse sistema. É isso?
- sim, é isso. Enquanto somos lembrados, (con)vivemos convosco.
- Então e aquele pessoal que já marchou há muito tempo e não tem ninguém por aqui que pense neles?
- são os tais jarretas que referi, não lhes aparece ninguém no radar porque toda a gente que conheceram está com eles.
- mas, então, oh primo, eles ficam nesse estado de jarretice para toda a eternidade?
- espera espera, está me aparecer aqui muita gente ao mesmo tempo.
- amigos e familiares?
- sim.
- Olha, manda-lhes, um abraço por mim.
- isso não funciona assim.
- não?
- não, eu estou em sintonia convosco e até convivo, mas na realidade vocês estão noutra dimensão.
- complicam o que é simples, é o que é. Então não era mais simples continuarmos todos em são convívio?
- pá, o sistema está configurado com uma só via. Eu estou convosco na medida em que vocês pensam em mim, mas vocês não estão comigo.
- Então, como estou a conviver contigo? Não me digas que já finei e nem dei por isso.
- porque sonhas Ricardo e, nessa altura, as leis da física que o tal Senhor criou desabam e restabelece-se outro tipo de comunicação que nos permite dialogar.
- ahhhh, olha lá, e as almas da familia, tens estado com elas?
- sempre.
- como assim?
- lembras -te do post que fizeste acerca dos qubits e do entrelancamento quantico que estão em todo lado ao mesmo tempo a velocidade quântica instantânea?
- sim, lembro, mas não sabia que tinhas acesso ao que eu escrevo.
- pois tenho, mas por aqui é coisa semelhante. Estamos sempre na presença deles.
- ai sim, que incrível, então o que está a fazer o teu pai neste preciso momento?
- ahh, xacaber... está ali na cozinha, com cachimbo na mão esquerda, de pé, com um joelho apoiado no banco, a fazer prefácio do livro que está prestes a sair.
- está a fazer outro livro?
- sim, o título é "economia celestial" que será adoptado para formação económica das almas que ascendem ou pretendem ascender a anjos. Divaga sobre teses acerca da economia do tempo.
- do meu pai e da minha avó não te pergunto, tenho estado a par das suas actividades por aí mas, conta lá, já viste o meu sogro?
- já, já vi varias vezes. O mecânico é mesmo ali ao fundo da minha rua.
- e?
- anda sempre com problemas no motor do tractor. Um kubota alaranjado que ele conseguiu recomprar. Andou pela galáxia toda até encontrá-lo. Volta e meia aparece com o motor de arranque na mão para conserta-lo.
- e o que faz ele, então?
- É o responsável designado pela vinha lá para as bandas de saturno. Passa bom tempo a fresar a matéria escura e mais os anéis do planeta que parece terem bons nutrientes para produzir um vinho verde de excelência. Eu até já fui a uma vindima dele logo ali por alturas de outubro. Ainda mal tinha chegado.
- cum caneco. Mas vocês bebem vinho por aí.
- yá, mas faltava o vinho verde e teu sogro veio com a ideia fixa de pôr todos os anjos e arcanjos a beber aquele néctar.
- com melão e presunto, aposto.
- podes crer. Uma delícia.
- olha lá, quando se vai para aí com que idade ficamos. Não sei se me faço entender.
- o tal Senhor decidiu que seria escolha de cada alma decidir o semblante, o aspecto que melhor se identificam com a vida que levaram. Mas tem que se escolher uma fisionomia superior à idade de 15 anos, caso contrário isto era um bando de crianças.
- portanto pedrinho, escolhemos a nossa idade, aquela em que fomos mais felizes ou que gostamos mais, desde que acima dos 15 anos.
- isso.
- e tu, que idade escolheste para ti?
- os 16 anos.
- malandro, é o tempo das paixonetas e das moças. Há falta delas aí, escolheste a idade em que tu (e eu) só pensavas nelas.
- eh eh eh. Mas não é necessariamente assim, há muito pessoal que escolhe a velhice. Depende de cada um, não é?
- voltando atrás, vamos ver, caraças, então se a alma não tem idade para que raios vocês tem que escolher uma?
- olha, também não sei.
- mas vocês veem-se mutuamente, quer dizer, precisam de ver o aspecto dalguém para o identificar?
- ahhh, não é propriamente ver com olhos, que esse já não temos, é uma espécie de match instantâneo. Como te explicar, é tipo uma rede wifi que capta imediatamente outra alma mas, em vez duma ligação simples, é-nos apresentado a figura e a presença doutrém.
- evoluído esse sistema, hein?
- yá, mas parece que vai surgir brevemente uma actualização que vai permitir uma interconexão imediata inter universos com outras almas.
- não sabem mais o que inventar.
- é por causa do fim dos tempos.
- como assim?
- pá quando for tudo encolhido no tal big crunch, quando este universo encolher até ao tamanho dum átomo, nada sobrevive. Incluindo as almas.
- ora bolas.
- para evitar que as almas sejam engolidas nesse processo cíclico, que ocorre em dezenas de milhar de milhões anos, a actualização vai abrir a possibilidade de nos transferir para outros universos que o tal Senhor está a criar.
- e depois?
- depois do big crunch devirá outro big bang e este universo renascerá. Nessa altura nós voltamos e ocupamos novos corpos nos planetas que vão surgindo.
- ahh quer dizer, um dia voltaremos à acção numa encarnação qualquer.
- isso.
- e poderemos escolher onde e em quem encarnar?
- ainda não fui informado acerca disso, mas parece que vou ter uma acção de formação para esclarecer esse assunto.
- há um assunto que te queira colocar. Vocês têm capacidade de antecipar o nosso futuro?
- temos, sabemos tudo acerca da forma como se vai desenrolar as coisas.
- por acaso não tens aí à mão de semear os números do euromilhoes para o jackpot desta semana?
- tenho, mas estou liminarmente impedido de revelar o que quer seja acerca do futuro.
- epá, eu não conto a ninguém. Vá lá.
- não posso. Mesmo que tos diga há um bloqueio automático da mensagem.
- esses engenheiros do sistema não brincam, caraças.
-