quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

…plenamente aptos para calcular a fundura e a duração do despenhamento…




-Então Ricardo? Não corremos mais, agora?...

-Não, agora caímos, Braveheart.

- Então, mas se não corremos não existimos. Não foste tu que estipulaste o "corro, logo existo"? Afinal, em que é que ficamos? Desistimos (que é como quem diz: "des-existimos")?...

- Além de estúpido, crónico, tens acessos de burrice, aguda! As regras têm excepções. Esta é uma delas. Quando se cai, não se corre. Neste momento não corremos porque estamos em queda livre e quando se está em queda livre a corrida torna-se redundante e dispensável!...

- Ah, portanto, despenhamo-nos. Quer dizer, caímos num enormíssimo buraco, cratera, falésia ou abismo. É isso?

- Não, pá. Braveheart, chama-se uma crise. Estamos a precipitar-nos por uma crise abaixo. Uma situação excepcional e complexa que não adianta explicar-te. Jamais entenderias.

- Mas assim, vista por dentro, deixa que te diga: parece um grande buraco. Poderá chamar-se crise, não discuto, mas é da cor dos poços imensos, tenebrosos. Todas estas trevas à nossa volta... mais parece que vamos pelo cano do infinito esgoto abaixo!... estou pasmado.

- Isso é porque estás a cair às cegas. Não compreendes. Ciclicamente, há quedas!...

- Foi pena que não te lembrasses disso antes de cairmos. Nós corríamos, num tal galope, como se nada mais houvesse, então e para todo o sempre, senão corrida e mais corrida!

- Se fossem previsíveis, as crises, Braveheart, não seriam crises. Nem teriam piada. A piada toda está em sermos surpreendidos por elas. É como nos filmes de terror! Toda uma volúpia do suspense, do frisson, do stress. Sem as crises, caía-se na monotonia!...

- Ah, finalmente, percebo: toda aquela correria era para nos despenhar-nos na crise!... Por conseguinte, "corro, logo existo, ou seja, vou prá crise." Por outro lado, vê bem, a queda na crise é boa porque é para nos salvar da queda má… caímos na crise para não cairmos na monotonia.

- Mais ou menos isso. A finalidade da corrida é a queda. Corremos para cair.

- Bem, então está alcançado o objectivo. Deveríamos comemorar, Ricardo. Todavia, estranhamente, toda esta escuridão está repleta de choro e ai Jesus-Deus nos acuda!... Em vez duma festa, mais parece um velório. Dir-se-ia que a surpresa não lhes agradou assim tanto.

- É porque são como tu: caem às cegas! De olhos fechados ou vendados.

- Bem, mas há uma certa lógica nisso, não?...

- Como assim?

- Então, uma vez que corriam às cegas, é natural que caiam da mesma maneira.

- Nem por sombras! Tu cais às cegas mas não corrias às cegas por uma razão muito óbvia e simples...

- Ah sim, qual é?

- Corrias atrás de mim. Logo não corrias às cegas: corrias atrás de mim.

- Bem, então eu corria doidamente, atrás de ti, é um facto. Tu é que corrias às cegas.

- Não eu também não corria às cegas: eu corria atrás deles.

- Óptimo, acho que percebo. Então ambos corríamos feitos doidos, eu atrás de ti e tu atrás deles: eles é que corriam às cegas.

- Nada disso. Eles corriam à nossa frente, nós corríamos atrás deles. E nós corríamos atrás deles precisamente porque eles corriam mais avançados que nós. Tornava-se impossível, portanto, não correr atrás deles. Já que eles corriam à nossa frente.

- Enfim, para não cairmos na monotonia, além da crise, caímos também na tautologia! Mas se ninguém corria às cegas, como é que agora um ror de gente cai às cegas?

- Pela mesma razão que tu cais às cegas embora não corresses às cegas: porque já não cais atrás de mim, mas à minha frente.

- Olha...pois é! Mal desatámos a cair, deixaste de estar à minha frente para passares logo para trás de mim.

- Pois, porque na queda as posições da corrida invertem-se, necessariamente. O mais avançado deixa de estar à frente para passar a estar detrás, ou seja, por cima. E o mais atrasado chega-se à frente, isto é, cai mais depressa, de modo a servir, entre outras coisas, de almofada, quando se bater no fundo.

- Muito bem, corríamos então para isto - para cair. E quando acabarmos de cair, quando batermos no fundo, o que é que fazemos?

- Batermos não: bateres. Tu é que bates no fundo, Braveheart; eu bato em cima de ti. Depois disso, é simples: corremos outra vez. Corremos para cair e caímos para correr de novo, é a lei das coisas. Tu, atrás de mim; e eu, à tua frente. Até à próxima crise.

- Francamente, não percebo porque é que depois desta crise não hei-de eu correr à frente. Até estou a ganhar uma certa perícia por aqui abaixo!... Só é pena esta escuridão toda que não deixa ver nada. Não tens aí uma lanterna Ricardo?

- Não podes correr à frente porque és um cegueta. Não terias discernimento para escolher atrás de quem é que haveríamos de correr, de modo a cairmos na crise e não na monotonia! Só eu possuo essa faculdade.

Herdei-a, ou então comprei-a, vai dar ao mesmo. Seja como for, há prerrogativas que são pessoais e intransmissíveis. As ideias, por exemplo.

- Ah, pronto. Se assim é... Entretanto, quanto tempo é que vamos estar a cair, fazes alguma ideia?...

- Aí não há problema. Logo que iniciámos a queda, comecei de imediato a elaborar um cálculo exacto, complexo e meticuloso, científico que baste. A todo o momento estabeleço uma estimativa quase perfeita, que burilo, transmito e aperfeiçoo no instante seguinte!...

- Fico muito feliz. É bom saber que os mesmos que não foram capazes de prever minimamente o abismo, se sentem, em contrapartida, plenamente aptos para calcular a fundura e a duração do despenhamento. Despencados pela falésia abaixo é que se acham em excelentes condições para lhe adivinhar as medidas!...