-Então Ricardo? Não corremos mais, agora?...
-Não, agora caímos, Braveheart.
- Então, mas se não corremos não existimos. Não foste tu que
estipulaste o "corro, logo existo"? Afinal, em que é que ficamos? Desistimos
(que é como quem diz: "des-existimos")?...
- Além de estúpido, crónico, tens acessos de burrice, aguda! As
regras têm excepções. Esta é uma delas. Quando se cai, não se corre. Neste
momento não corremos porque estamos em queda livre e quando se está em queda
livre a corrida torna-se redundante e dispensável!...
- Ah, portanto, despenhamo-nos. Quer dizer, caímos num
enormíssimo buraco, cratera, falésia ou abismo. É isso?
- Não, pá. Braveheart, chama-se uma crise. Estamos a
precipitar-nos por uma crise abaixo. Uma situação excepcional e complexa que não
adianta explicar-te. Jamais entenderias.
- Mas assim, vista por dentro, deixa que te diga: parece um
grande buraco. Poderá chamar-se crise, não discuto, mas é da cor dos poços
imensos, tenebrosos. Todas estas trevas à nossa volta... mais parece que vamos
pelo cano do infinito esgoto abaixo!... estou pasmado.
- Isso é porque estás a cair às cegas. Não compreendes.
Ciclicamente, há quedas!...
- Foi pena que não te lembrasses disso antes de cairmos. Nós
corríamos, num tal galope, como se nada mais houvesse, então e para todo o
sempre, senão corrida e mais corrida!
- Se fossem previsíveis, as crises, Braveheart, não seriam
crises. Nem teriam piada. A piada toda está em sermos surpreendidos por elas. É
como nos filmes de terror! Toda uma volúpia do suspense, do frisson, do stress.
Sem as crises, caía-se na monotonia!...
- Ah, finalmente, percebo: toda aquela correria era para nos
despenhar-nos na crise!... Por conseguinte, "corro, logo existo, ou seja, vou
prá crise." Por outro lado, vê bem, a queda na crise é boa porque é para nos
salvar da queda má… caímos na crise para não cairmos na monotonia.
- Mais ou menos isso. A finalidade da corrida é a queda.
Corremos para cair.
- Bem, então está alcançado o objectivo. Deveríamos comemorar,
Ricardo. Todavia, estranhamente, toda esta escuridão está repleta de choro e ai
Jesus-Deus nos acuda!... Em vez duma festa, mais parece um velório. Dir-se-ia
que a surpresa não lhes agradou assim tanto.
- É porque são como tu: caem às cegas! De olhos fechados ou
vendados.
- Bem, mas há uma certa lógica nisso, não?...
- Como assim?
- Então, uma vez que corriam às cegas, é natural que caiam da
mesma maneira.
- Nem por sombras! Tu cais às cegas mas não corrias às cegas
por uma razão muito óbvia e simples...
- Ah sim, qual é?
- Corrias atrás de mim. Logo não corrias às cegas: corrias
atrás de mim.
- Bem, então eu corria doidamente, atrás de ti, é um facto. Tu
é que corrias às cegas.
- Não eu também não corria às cegas: eu corria atrás deles.
- Óptimo, acho que percebo. Então ambos corríamos feitos
doidos, eu atrás de ti e tu atrás deles: eles é que corriam às cegas.
- Nada disso. Eles corriam à nossa frente, nós corríamos atrás
deles. E nós corríamos atrás deles precisamente porque eles corriam mais
avançados que nós. Tornava-se impossível, portanto, não correr atrás deles. Já
que eles corriam à nossa frente.
- Enfim, para não cairmos na monotonia, além da crise, caímos
também na tautologia! Mas se ninguém corria às cegas, como é que agora um ror de
gente cai às cegas?
- Pela mesma razão que tu cais às cegas embora não corresses às
cegas: porque já não cais atrás de mim, mas à minha frente.
- Olha...pois é! Mal desatámos a cair, deixaste de estar à
minha frente para passares logo para trás de mim.
- Pois, porque na queda as posições da corrida invertem-se,
necessariamente. O mais avançado deixa de estar à frente para passar a estar
detrás, ou seja, por cima. E o mais atrasado chega-se à frente, isto é, cai mais
depressa, de modo a servir, entre outras coisas, de almofada, quando se bater no
fundo.
- Muito bem, corríamos então para isto - para cair. E quando
acabarmos de cair, quando batermos no fundo, o que é que fazemos?
- Batermos não: bateres. Tu é que bates no fundo, Braveheart;
eu bato em cima de ti. Depois disso, é simples: corremos outra vez. Corremos
para cair e caímos para correr de novo, é a lei das coisas. Tu, atrás de mim; e
eu, à tua frente. Até à próxima crise.
- Francamente, não percebo porque é que depois desta crise não
hei-de eu correr à frente. Até estou a ganhar uma certa perícia por aqui
abaixo!... Só é pena esta escuridão toda que não deixa ver nada. Não tens aí uma
lanterna Ricardo?
- Não podes correr à frente porque és um cegueta. Não terias
discernimento para escolher atrás de quem é que haveríamos de correr, de modo a
cairmos na crise e não na monotonia! Só eu possuo essa faculdade.
Herdei-a, ou então comprei-a, vai dar ao mesmo. Seja como for,
há prerrogativas que são pessoais e intransmissíveis. As ideias, por
exemplo.
- Ah, pronto. Se assim é... Entretanto, quanto tempo é que
vamos estar a cair, fazes alguma ideia?...
- Aí não há problema. Logo que iniciámos a queda, comecei de
imediato a elaborar um cálculo exacto, complexo e meticuloso, científico que
baste. A todo o momento estabeleço uma estimativa quase perfeita, que burilo,
transmito e aperfeiçoo no instante seguinte!...
- Fico muito feliz. É bom saber que os mesmos que não foram
capazes de prever minimamente o abismo, se sentem, em contrapartida, plenamente
aptos para calcular a fundura e a duração do despenhamento. Despencados pela
falésia abaixo é que se acham em excelentes condições para lhe adivinhar as
medidas!...
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