Bh – Ricardo ainda bem que chegaste, tenho estado a pensar em
formas de resolução de alguns problemas do país.
Rb – Era suposto ser eu a pensar, mas enfim, diz lá.
Bh – Dos vários tabus civilizacionais - mais ainda que o
incesto, a pedofilia, ou o infanticídio - há um que sobremaneira me repugna: o
canibalismo. Mas, bem vistas as coisas, e ainda mais os tempos em que vivemos,
cheguei à conclusão e sou forçado a reconhecer que é apenas mais uma prova de
como sou um indivíduo preconceituoso, obscurantista, bota de elástico e até, a
limite, faxistóide. E irrealista. Muito. Irrealista e obstinado. Todavia, decidi
arrepiar caminho. Nunca é tarde para nos resgatarmos às nossas inibições, digo,
erros.
Rb – De que falas Braveheart?
Bh- Ahh de canibalismo.
Rb – Estás doido!?
Bh – Não pá, estive a pensar no desemprego em Portugal, a nossa
pátria e, enfim, de modo a compensar o nosso Portugal de todos estes meus
atrasos, decidi lançar-me na proposta dum avanço tão natural quanto lógico para
a resolução do problema.
Rb –hummm
Bh – Vê bem, como diz a Bíblia Sagrada, há um tempo para tudo.
As pessoas, não sei porquê, tendem a ler o tudo como um
quase-tudo, mas fazem mal: é mesmo tudo que está lá escrito.
Rb – e…
Bh - E se está lá escrito, quem somos nós para duvidarmos? Eu,
por mim, deixei de alimentar dúvidas. E basta-me olhar à minha volta - ver
telejornais, jornais, filmes, revistas, blogues e facebocas (twits é coisa que
ainda não adquiri estômago para frequentar, mas, concluído o curso de faquir
cibernóico que venho frequentando, lá chegarei; não percas a fé) - pois, como
dizia, basta-me a realidade circundante para que uma fria e arrepiante certeza
me invada.
Rb – Estou cansado Braveheart, vai directo ao assunto…
Bh – Certo. Ora, isto é como tudo: há um tempo para a subida e
há um tempo para a descida; há uma tempo para a paz, e há um tempo para a
guerra; há um tempo para o amor, e há um tempo para o ódio; há um tempo para o
nascimento e a juventude, e há um tempo para a velhice e a morte. É uma lei
eterna e imutável, esta coisa do Tempo. Por isso, capacitemo-nos: houve um tempo
para a civilização e agora há um tempo para o seu contrário. Houve um tempo para
erigir - e que belas catedrais e sinfonias foram capazes os homens de erguer ao
céu -mas agora está na hora de ruir, de estender passadeiras rolantes de cacos,
lixos e entulhos na direcção do abismo.
Rb – Tenho receio do que vem por aí pá… vá desenvolve.
Bh - Nesse sentido, nós, portugueses, temos uma palavra a
dizer. Bem, agora, não será palavra propriamente dita, será mais grunhido,
guincho, ronco ou ruído que o valha, mas o que quer que seja, convirá que nos
represente condigna... neste caso, indignamente. Em suma, urge que não se deixe
vago o nosso lugar no camarote dos acontecimentos.
Rb – Caraças pá, diz lá que coisa pensas.
Bh - Vamos então à proposta concreta. E nada modesta, porque
isso de modéstia é para Gregos.
Rb – Sim…
Bh - É verdade que temos pedalado, regularmente, na retaguarda
do pelotão da Descivilização. Enquanto outros povos e regiões se têm
descivilizado a grande velocidade, nós, muitas vezes, e até por vergonhosos
períodos, temos progredido a trouxe-mouxe.
Rb – Como assim?
Bh -Ao infanticídio dos abortos, por exemplo, só recentemente
lá chegámos - já inúmeros outros, em fogoso galope e tumultuoso sprint, tinham
cortado a meta há séculos. No Terrorismo, na chacina industrializada, ainda
vamos a milhas. Já toda a europa e quase toda a ásia e américa descansam no
hotel, saboreando as delícias da sauna e da massagem, e ainda zanzamos nós, pela
encosta abaixo, perdidos. Não admira, assim, que nos olhem com desprezo e
desconsideração. Por este andar, assaz lerdo e entorpecido, ainda acabamos
absorvidos pelo carro vassoura da prova, e um dia destes, quando se fizer a
história da Descivilização, nem uma nota de rodapé, ínfima que seja, nos
prestará memória.
Rb – Sim, consigo estar de acordo…
Bh - Pois chegou a hora de darmos uma violenta sapatada no
pelotão! Aproveitamos o factor surpresa, e, passarmos por estes descivilizados
todos a jacto, que nem um foguetão, e encetamos uma fuga mirabolante que
só terminará em glória. E uma pipa de massa pela vitória, olaré.
Rb – E como daremos nós essa sapatada inaudita, espectacular e
miraculosa?
Bh - Muito simples: legalizando, melhor dizendo, restaurando o
canibalismo.
Rb – Como? epá que conceito macabro – a restauração do
canibalismo. Queres expressão mais infeliz e, por isso mesmo, esplendorosamente
marketil que esta?
Bh – Compreendo mas…
Rb - De que forma?
Bh - É simples, lógico e moderno: vamos comer os desempregados.
Rb – Nossa senhora, que dizes?
Bh - Vê bem ricardo, já os criamos em forma de gado - como a
Argentina cria bois, a austrália ovelhas ou a antártida pinguins, nós criamos
desempregados, manadas e manadas deles…
Rb – sim…
Bh – … falta agora processá-los consequentemente. É um
monumental desperdício de carne a que a nosa economia periclitante não se pode
dar. De carne, de dinheiro e de tempo.
Rb – Braveheart, promete que não publicas isto. É uma vergonha
dedicares o nosso tempo a um assunto tão, tão… ignóbil, peçonhento.
Bh – Calma pá, eu explico sucintamente: ao contrário dum boi ou
dum porco, um desempregado, quanto mais tempo é deixado na pastagem, mais
emagrece. Por uma razão muito simples: o desempregado não pasta. Monetariamente
inibido, deprimido, socialmente odiado, abominado pela própria família, o
desempregado perde rapidamente quase todo o interesse culinário. A tenrura
original cede rapidamente passo a um intragável emaranhado de nervo e osso.
Rb – Sim e em que é que isso contribui para a felicidade da
nacinha?
Bh – Ora, como é óbvio, quanto mais o tempo decorre nessa
condição, de desemprego, pior. Mas, por isso mesmo, o potencial lucrativo do
desempregado é imensamente maior que o de outros gados, quer bovinos, quer
suínos, quer, até, avícolas. Porque dispensa, de todo, qualquer despesa com
alimentação, crescimento, engorda e parque. Dispensa e desaconselha.
Rb – Não acredito que esteja a ter esta conversa…
Bh – Mas estás, portanto, o desempregado, por assim dizer, é
uma carne instantânea: mal desponta, está logo pronta a ser processada e
consumida. Esse, de resto, é o seu momento ideal de colheita e abate. Assim,
convém criar mecanismos de recolha e transporte ágeis e bem organizados, entre
os produtores e os matadouros municipais, de modo a que nenhuma da excelência e
suculência potenciais se percam com demoras e burocracias inúteis.
Rb – Ahh estás a brincar seu malandro…
Bh – Nada disso, para aqueles que ainda sintam algum escândalo
com isto, como tu, convém que se compenetrem nesta incontornável fundamentação
técnica que a toda esta aparente (apenas aparente) carnificina sugere, repara:
numa economia arcaica, a finalidade dos agentes é produzir bens ou serviços
necessários ou desejados pelas populações; na economia moderna, de que o novo
Portugal se constitui laboratório radioso e radiante, a finalidade da economia
(investimento, produção e distribuição) é produzir desempregados.
Rb – Prossegue.
Bh - Ora, é admissível que uma economia tenha por destino a
mera produção de lixo e desperdício?
Rb - Nem por sombras.
Bh - Os desempregados não podem, pois, ser o atestado do nosso
absurdo, nem o absurdo pode ser a nossa instituição. Depois... bem, depois, é
todo um admirável mundo novo de possibilidades e nichos de mercado. Até porque o
desempregado não é apenas imensamente mais rentável que o bovino: é imensamente
e mansamente também. Um bovino ainda oferece o risco duma cornada, o
desempregado nem isso.
Rb – Uma ideia dessas só encontrará, talvez, paralelo nalguns
passageiros de comboio por alturas do III Reich.
Bh – Não penses assim. Lembra-te de Euclesiastes da Bíblia.
Tempo para TUDO. Mas quanto às possibilidades propriamente ditas, desde menu de
atracção turística nos nossos restaurantes, hotéis e festivais gourmet, até
enchidos, fumados, enlatados de exportação é toda uma panóplia de mais-valias e
lucros fabulosos ao virar da esquina. E a panacéia que não será para o
défice!... Um Xanax para as contas públicas!... E a maravilhosa bomba vitamínica
e anti-inflamatória para aquele Instituto usurário da Segurança Social, que,
justamente, deverá gerir a exploração da coisa, como só ele sabe e a sua vocação
essencial e treino o exaustivo reclamam!... Ah, e nunca esquecendo, o sublime
paraíso para as grandes cadeias de distribuição, para gáudio e orgasmo
intelectual dos Pingos Doce todos da parolóquia.
Rb – Bem, ouve, Braveheart, idealizaste toda uma industria ao
redor da coisa, mas assim de repente, e desconsiderando o mau gosto da tua
ideia, por acaso até me ocorrem umas cenas pitorescas de varinas pelas ruas da
da cidade, rebocando pela trela, pequenas filas de jovens recentemente postos
na rua e apregoando: "Olha o desempregado fresco! Olha o desempregado
fresco!...", até, confesso, quase que se me humedecem os olhos.
Bh – Estás a entrar na ideia Ricardo, até te digo, proibidos de
pescar no mar, que alegria seria assistir ao ressuscitar dos nossos arrastões,
lançando doravante as redes em terra !... E venham cá com quotas para o
desempregado como vieram para a sardinha, que os nossos bravos governantes
dizem-lhes das boas!
Rb – Pronto Braveheart, já acabaste não é, agora faz um favor,
promete-me que não publicas esta conversa. Prometes?
Bh – Claro que sim.
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ps. conversa imaginária inspirada na ideia daquele dragão que já não existe
ps. conversa imaginária inspirada na ideia daquele dragão que já não existe
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