quinta-feira, 27 de maio de 2010

…stop pouco credível stop…

Ninguém me telefona a meio da noite, mas ontem recebi uma chamada… era o meu editor americano:
Braveheart, famoso autor do blogue Crónicas da Terra Ardente?”
“O próprio”, respondi-lhe
Preciso urgentemente de uma história para a série Quinta Dimensão (Twilight Zone)”.
Concordei logo… Fiquei de lha enviar, mas faltavam-me ideias.
Como sabem, sou autor de contos de ficção científica e de imaginação, com agentes galácticos. O meu preferido é o Flash Gordon e o Star Wars, mas juro que desta vez não me ocorria nada.
Andei às voltas, e nada.
Mas, de súbito fez-se luz… rabisquei umas coisas e enviei este manuscrito:
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EPISÓDIO I
Música do genérico: ti-ru-ru- turururu-ti-ti…. Ta-nan.
O senhor Rod Serling começa:
This is a story…” como quem diz: “Esta é a estória de um país, noutro planeta, noutro tempo, onde se vivia o dia-a-dia, com um humanóide a afundar-se na cruel ilusão de que podia vencer a realidade. Este episódio chama-se O TANGO e estamos na QUINTA DIMENSÃO”.
Fade-out
Num cenário futurista, uma cidade devastada e vazia. Filmagem em plongée e contre-plongée.
O humanóide está no poder... procura eleitores.
Prolongar cena. Vários planos, campo-contra-campo, vemos a angústia do governante. A luz implacável. O semblante carregadamente lunático… 
Ao fundo está um eleitor (aproximar um plano lentamente), junto a escadarias de acesso à antiga estação de comboios rápidos. É um sem-abrigo e sem-emprego. Tem aspecto miserável. Escanzelado e sujo.
O humanóide avança para ele, com ansiedade.
HUMANOIDE: Finalmente um eleitor. Estou salvo. Se o convencer, terei 100% nas próximas legislativas.
ELEITOR: Estou a reconhecer a sua cara.
HUMANOIDE: Sim, sou eu. Estou no poder há 30 anos, comecei em 2005, mas preciso de mais quatro. Salvei o país. Fiz apenas o que tinha de ser feito. Quando chegaram os bárbaros, aumentei os impostos… ignorei todos os avisos, construí esta estação de comboios, iludi os parceiros europeus, o FMI… nunca pedi desculpa.
ELEITOR: Mas olhe à nossa volta. Estamos numa desgraça.
HUMANOIDE: Estão mais pobres, mas a culpa é vossa. A culpa nunca é minha. E sobretudo é preciso combatermos os pessimistas como você. Precisamos de confiança. É absolutamente imperioso prosseguir as reformas. Vou provar que tenho razão.
ELEITOR: Preciso de comer, pode dar-me algum pedaço de pão ou um moeda das antigas?
HUMANOIDE: Escudos novos, escudos novos… vou dar-te quinhentos milhões de escudos novos.
ELEITOR: Mas, isso não dá para nada… depois que o senhor congelou os depósitos bancários em Euros, em 2013, e os trocou por Escudos Novos, eles desvalorizaram mil porcento no próprio dia e…
HUMANOIDE: Era absolutamente imperioso fazê-lo… tinha que sacar os Euros todos das contas bancárias, enquanto havia… absolutamente imperiosos para obras, obras, obras.
ELEITOR: Mentiu-nos, foi o que foi…
HUMANOIDE: Apenas troquei os Euros por Escudos Novos, um papel por outro… e são bem lindas as novas notas, uma obra de arte de frank garry junior…  
Como que por magia, o cenário muda. O eleitor está feliz. Há uma festa, champanhe, risos, música suave.
HUMANOIDE: Bebidas à minha conta. Ou antes, à sua, pois terá de pagar os seus impostos (risos). Consuma à vontade.
ELEITOR: Mas não me apetece consumir.
HUMANOIDE: A economia precisa de girar. É uma absoluta prioridade. E tenho um novo plano de obras públicas. Tenciono manter todos os projectos, para escoar os fundos comunitários e criar 150 mil novos empregos.
ELEITOR: Nenhum dos meus amigos tem emprego e cortaram-nos os fundos da Europa, não se lembra?
HUMANOIDE: O mais importante é que nunca pedirei desculpa por cumprir o meu dever. E não se esqueça de que é preciso dois para dançar o tango.
Agarra num manequim feminino que estava por ali e começa a rodopiar. Dança, dança e rodopia tangos melancólicos.
Música: Mi Noche Triste.
O humanóide faz uma impecável caminata sincopada, seguida de uns ochos adornados com especial acutilância e uma salida com adornos, abrilhantada com um transpié cruzado con giros.
Encantador. A multidão de assessores robóticos (todos automáticos) faz grandes oléadas de entusiasmo.
HUMANOIDE: A festa tem de continuar. O nosso país, neste planeta distante, está absolutamente empenhado.
ELEITOR: Empenhado em quê?
HUMANOIDE: Empenhado propriamente dito.
ELEITOR: Porque é que só agora o diz?
HUMANOIDE: Afirma a ciência política que primeiro é preciso negar o que é evidente, depois culpar a oposição, finalmente culpar absolutamente o povo, que só pensa em futebol, fado e fatima. É preciso estar sempre a pensar em arranjar-lhe entretenimento, temas laterais que o possam distrair dos seus problemas. E isso custa dinheiro. A minha tarefa é criar um mundo virtual, de forma a que os eleitores já não saibam se estão a viver a realidade ou a ilusão. Se mentirmos mil vezes, criamos uma narrativa em que todos acreditam. Ouça esta música: a canção chama-se Volver. Não é bonita?
O eleitor foge a gritar “Tirem-me daqui”.
A câmara afasta-se, mostrando o mundo alucinado e decadente. O Humanóide fica sozinho, a dançar o tango.
A melodia de El dia que me quieras ouve-se ao longe.
Genérico.
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Et voilá foi o que me ocorreu…recebi ontem um telegrama do meu editor americano. Dizia assim:
“episódio quinta dimensão rejeitado stop pouco credível stop precisamos novo episódio para série flash gordon stop".


1 comentário:

Xinha disse...

FABULOSO!!!!!!!!