quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Ensaio sobre o Instinto, parte I

 -Ensaio sobre o instinto-


Ricardo (Rb) - olha lá, estava aqui a observar esta mãe galinha, que passou trinta longos dias, non stop, aninhada sobre ovos para os chocar e agora observo a forma como ela protege, sob as suas asas, os seus pintinhos, atentissima aos predadores e compenetrada a ensinar-lhes como se esgravata a terra.

Braveheart (BH)- são instintos


Rb- o engraçado disto é que os outros pintos mais velhos que ela também chocou parece já nem saber quem são.

BH- Memória de curto prazo. 


Rb- pois, serão instintos. Instinto de proteção, procriação...

BH- ... entre outros como a autopreservação. 


Rb- dá a ideia que lhes foi inculcado um software à nascença que corre em situações perfeitamente previsíveis. Quer dizer, quando é activado um estímulo específico o software responde. No caso das galinhas o software parece correr em segundo plano e depositado numa espécie de memoria RAM. Desligadas as situações que fizeram actuar o software, a memória perde--se. Eles não têm memória ROM?

BH- Nao. A memória é função da capacidade cerebral. Sendo pequeno o cérebro, este vai rejeitando informações supérfluas para se concentrar nas essenciais. Mas, estás a querer dizer que são comportamentos irracionais. Que não dependem da razão, mas sim do cumprimento das diretrizes programada, não é assim?


Rb- pois, assim é. Não diria irracionais, mas sim inconscientes.

BH- estou a sentir que está a subir por essa cabeça mais outra estarolice retórica temática...


Rb- ahh sim. Epá, estava a pensar no 'ensaio sobre a cegueira' de Saramago e, de repente, veio-me à cachola a hipótese de, tal como na obra do escritor, aparecer por aí um vírus que, por e simplesmente, cancelasse todos os instintos dos animais e das pessoas ao invés de as por cegas.

BH- ahhh?


Rb- sim, como seriam as coisas se, um a um, a bicharada e as pessoas deixassem de ter Instintos?

BH- bem, para início de conversa, a galinha deixava de chocar os ovos. Os passarinhos de fazer ninhos... o factor reprodução das espécies deixava de ser algo  instintivo, e passava a ser fruto do acaso, ou da vontade própria no caso dos animais mais racionais.


Rb- transpondo os instintos para o ser humano...

BH- seria coisa semelhante. O cérebro toma quase sempre decisões antes da consciência. Em quase todas as vertentes. Às vezes não parece porque a decisão ocorre a fracções de segundo da consciência e dá a ideia de que tomaste uma decisão consciente mas, na verdade, está provado que o cérebro decidiu antes de termos consiciencia dos factos.


Rb- mas eu estava a falar de instintos e não de determinismo.

BH- tá, eu sei. O ponto é que sem instintos a vida não existia. Como bem disseste, as galinhas não chocavam os ovos logo...


Rb- mas a vida encontra sempre um caminho alternativo. Quer dizer, as galinhas podiam não chocar os ovos mas, em qualquer ponto do planeta, eles encontrariam a temperatura certa para eclodir.

BH- certo, mas isso depende dos mesmos estarem fecundados ou não. Se o galo não tivesse o instinto de galar todo o harém, não havia vida nos ovos, por mais chocadeiras ambientais óptimas que houvessem.


Rb- então, e como explicas que a tartaruga enterre a boa profundidade os seus ovos e os abandone?

BH- é outra espécie, que requer outra temperatura. Mas estavam fecundados por um macho.


Rb- e como explicas que mal eclodem as tartaruguinhas desatem a correr desvairadas para o mar?

BH- é instinto. Elas não correm para outro lado que não seja de encontro ao mar. A programação efetuada foi essa: follow the sea


Rb- pois era aí que queria chegar. Parece que finalmente percebeste. Imagina então que todos os animais e pessoas perdiam esses instintos. 


BH- era o fim do mundo.


Rb- estás a esquivar-te à hipótese. Então e se, de repente, fossemos desprogramados dos instintos?


BH- mas isso já acontece, embora com menos ocorrências. A natureza já produz seres desprovidos dalguns instintos. Há mulheres que não querem ser mães e quando são rejeitam os bebés, homens que não querem ser pais, há pessoas que se suicidam contra o instinto de autopreservação etc


Rb- todos pá. Cancelar todos os instintos, não apenas os que não contendem com opções individuais. Todos, excepto aqueles perfeitamente incontroláveis do nosso corpo como piscar os olhos, respirar etc. 


BH- nesse caso, se os instintos fossem anulados para todas as criaturas, as características de cada espécie seriam também anuladas. 


Rb- Nesse ambiente, ao contrário da estória do Saramago nos "ensaios sobre a cegueira" onde os instintos se sobrepuseram à razão e à dignidade humana, no meu ensaio queria perceber o cenário da ascensão duma doença que, em vez de tornar cegas as pessoas, as desprovesse de instintos.


BH- hummm Saramago não se lembrou disso. Se se tivesse lembrado, o ensaio seria mais interessante. Estou para aqui a imaginar um mundo sem instintos e isto dá pano para mangas. Pena não escreveres bem, como ele.


Rb- podias dar uma ajuda, tu que não tens corpo e nem sabes bem (senão virtualmente) o que é ter, de facto, instintos.


BH- comecemos pelo princípio então. Imagina que é introduzido por acidente um vírus, manipulado nos laboratórios de pesquisa genética dos EUA, com capacidade de destruir a informação nas células memória que nos garantem os instintos. 


Rb- yá, isso, vamos por aí...

BH- vamos não. Vou. Tu ficas aí a ouvir. 


Rb- Deves saber que essa matéria foi alvo de muita dedicação de poderosas mentes como Nietzsche, Freud etc. 

BH- sei sei. O Freud chamava-lhe pulsões e o Nietzsche tem uma ideia que me parece muito próxima com a tua. 


Rb- mas eu ainda não te dei a minha opinião.

BH- pois não, mas eu sinto que és daqueles que acha que a domesticação excessiva e controlo de espécies está a alterar os instintos da bicharada.


Rb- por acaso acho mesmo. E até vou mais longe: o ser humano tem vindo a domesticar os próprios instintos duma forma demasiado acelerada, o que me aproxima da tese de Nietzsche de que o homem moderno vive em 'má consciência' reprimindo à bruta os seus instintos milenares.

BH- eu vi logo. Nem queres esperar que seja eu a fornecer os argumentos, não é? 

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(continua)

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