quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Escutar ou não escutar, eis a questão

 - Escutar ou não escutar, eis a questão -


Discussões antigas e acesas acerca do sexo dos anjos ou aquel'outras acerca de quantos anjos podem dançar na cabeça dum alfinete suscitaram no Braveheart uma outra que teve comigo. 


Tem ela a ver com a hipótese dos Santos, Apóstolos, Nossa Senhora e demais hierarquias celestiais poderem ou não perscrutar os nossos pensamentos quando a eles nos dirigimos em preces ou veneração.


Aquela antiga discussão de retórica filosófico-religiosa onde se degladiavam argumentos acerca de "quantos anjos podem dançar na cabeça dum alfinete" é bem conhecida. Uma discussão estéril porém, mas acesa, que pretendia responder a outras questões entre as quais indagar acerca da substância dos anjos. 


A minha discussão com o Braveheart é outra, intestinalmente acesa, mas não necessariamente estéril.


Resume-se a isto:


Afinal de contas, quando rezamos a um santo ou santa, anjo ou anja - aqui o Braveheart tentou reiniciar a outra discussão acerca do sexo dos anjos - Nossa Senhora ou outra hierarquia qualquer, podemos fazê-lo em pensamento ou temos mesmo de fazê-lo em viva voz?


Isto parece não ter importância alguma, contudo caí na asneira de dizer que, quando o fazia, quando rezava fazia-o sempre em completo silêncio. 


Quer dizer, rezava e pedia-lhes ajuda  sem usar da palavra. Tão somente o pensamento dirigido ao santo escolhido (Santo Ovídio, o intenso zumbido que tenho continua de vento em popa, não se esqueça se faz favor, rogo, quando vossa santidade for a despacho com o Altíssimo de levar um post it que seja ou mero rodapé na lista).


Braveheart- Não penses nisso pá. Quem pede em silêncio só pode ser escutado pelo omnisciente Deus todo poderoso. Nunca pelas hierarquias inferiores porque estes não têm essa qualidade da omnisciência que é reconhecidamente um exclusivo Dele. Está escrito no Livro Sagrado pá. Portanto se queres ser escutado pelos santos tens mesmo de botar faladura e até deves exagerar um bocadinho como quando se vai às urgências dos hospitais a ver se sai uma pulseira com uma cor prioritária).


Ricardo - És um bocado bruto. Mas não poderia Deus concessionar essa possibilidade nas santidades?


Braveheart - Claro que não. Os atributos Dele são só Dele e não os concessiona a ninguém. 


Ricardo - hummm, como são escutados os mudos se não conseguem falar em viva voz com os Santos?


Braveheart- É mais do evidente que quando rezas ou queres ajuda aos santos e à Nossa Senhora ou anjos, tens de o fazer em voz viva.  Caso contrário Eles, lá de cima, só te vêm a gesticular à toa umas cenas a ver se percebem o que queres pela expressão facial, já que não abres a matraca.


Ricardo - Mas, vamos lá ver, talvez possa haver para esses mudos uma excepção. Afinal de contas Deus também é omnipotente e pode muito bem conferir uma excepção para os mudos se fazerem ouvir sem falar.


Braveheart- podes imaginar o que entenderes, até és tão bom nisso como eu mas, epá não pode ser. Garanto-te. Olha o teu exemplo. Quantas vezes te concederam o que lhes pediste?


Ricardo- Nunca fui muito de pedir e rezar mas, por acaso, lembro-me quando era rapaz pedia sempre três coisas quando ia à missa todos os dominguinhos.


Braveheart- o que pedias tu em silêncio às santidades?


Ricardo - mundo sem guerras, saúde para o meu pai que estava doente e uma outra coisa que me aprazia naquele momento. Por exemplo uma mota, um skate, melhores notas na escola ou outras cenas que reservo só para mim.


Braveheart- logo na primeira parecias uma daquelas candidatas a miss USA: Peace on Earth. Mas desses três pedidos que taxa de aprovação tiveste?


Ricardo - uma.


Braveheart- aprovaram um pedido portanto. E podes dizer qual deles foi?


Ricardo - posso, era sempre o terceiro, que era um conjunto alargado de coisas, o skate, a mota suzuki, melhores notas na escola a português e a francês, uma raquete de tenis etc. 


Braveheart - Portanto, tudo aquilo que podia depender da ajuda dos Santos não tiveste. Mas tiveste o que dependia de ti ou dos teus pais. Aí está a prova. Tu pedias em silêncio mas Eles não te ouviam. Experimenta fazer-te ouvir à seria. Com respeito, mas com firmeza e confiança. Em viva voz. Bota-Lhes nas bentas o que te vem das entranhas.


Ricardo - Achas que dessa forma sou atendido?


Braveheart - Claro que sim. Só não és atendido naquilo que pedes e que entra em conflito com a moral divina ou com os planos do Altíssimo ou mesmo em conflito com pedidos de terceiros. 


Ricardo - Pois, é o caraças, quase tudo entra em conflito com tudo.


Braveheart-  epá, não podes pedir para o FC Porto ser sempre campeão. A lagartagem também tem os seus crentes e devotos a pedir. Por isso, pedidos para paz no mundo é pedido escusado, FC Porto sempre campeão também. Sabes lá se a guerra nao será o mal melhor para a melhor solução de paz.


Ricardo - És capaz de ter razão.


Braveheart- o essencial é fazê-lo falando com eles. 


Ricardo - olha lá e se em vez de pedir aos santos e demais hierarquias ultrapassar os intermediários celestiais todos e dirigir-me diretamente a Deus em pensamentos.


Braveheart - sim, a única forma que tens de falar com uma entidade celestial por pensamento é apenas com Deus. Nem o diabo sabe aquilo que pensas, embora tenha astúcia bastante para fazer boas estimativas acerca daquilo que pensas porque é fino como um alho. Mas não sabe de facto aquilo que pensas, por essa razão perdeu a aposta com Deus quando estimou mal a lealdade extrema de Jó a Deus.


Ricardo - então, quer dizer, posso falar em pensamento diretamente ao Deus que ele escuta, embora ponha de lado preces ou pedidos conflituantes ou incompatíveis com os Seus planos. Se pretender alvíssaras das santidades devo conversar em viva voz e eles depois intercedem junto do Altíssimo, se acharem que vale a pena depositar confiança em mim.


Braveheart - sim, é isso. Preces em pensamento só dirigidas a Deus. Se  pretenderes um intermediário as preces devem ser faladas.


Ricardo - então, quer dizer, os mudos não podem rezar em pensamentos aos santos?


Braveheart - podem, mas não são escutados. Tal como o diabo não te pode ouvir os pensamentos, os anjos em geral e as santidades também não. Acontece porém que esse Pessoal tem outros dons. Uma acuidade e sensibilidade que, não escutando, intuem com divinal competência.


Ricardo - percebo isso mas, vejamos noutra perspetiva. E se em vez das preces em pensamento ou em viva voz, o fizéssemos escrevendo. Achas que eles 'escutariam' o que foi escrito.


Braveheart- mil cara... me...


Ricardo - olha a linguagem.


Braveheart - ..odam... mas quem é aqui o Braveheart afinal de contas? Isso era suposto ser eu a ter essa ideia.


Ricardo - ah, tão cheio de sabedoria e não tens resposta para esta. Toma lá e embrulha.


Braveheart- claro que tenho.


Ricardo - tens?


Braveheart - só estava a ver até onde ia a tua ignorância. Superou as minhas expectativas. Nunca leste que tudo começou com o Verbo?


Ricardo - sim.


Braveheart - Pois é através do verbo que melhor podes aspirar a ser atendido. Desde que saibas escrever, claro. Ou através doutras modalidades como a música, a pintura e as outras formas de expressão da alma.


Ricardo - Não queria fazer o teu papel, mas tenho outra dúvida que me veio agora mesmo à cabeça. Nas artes eu compreendo que as santidades possam compreender porque a expressão artística não tem língua. Contudo a escrita tem um idioma. Em que idioma me dirigiria a eles?


Braveheart- epá eu só te aturo essas bacoradas porque partilhamos o mesmo corpo senão...


Ricardo - mas eles entendem todas as línguas ou idiomas? 


Braveheart - pá, da mesma forma como rezas em português, escreves em português. Os idiomas foram um castigo de Deus para suster os ímpetos humanos de sonhar serem como Ele. Lembras -te da estória da Torre de Babel? Foi aí que tudo começou. Deus baralhou os construtores usando um artifício simples para eles não se entenderem. Pôs os engenheiros a falar mandarim com os arquitetos que só percebiam espanhol e aos trolhas pô-los a falar francês a uns, aramaico a outros e por aí em diante. A obra parou porque ninguém se entendia. A hora da bejeca para uns era entendida por outros com sendo para pintar de beje en francais.


Ricardo - ah e então?


Braveheart - então é isso. Quando ascendes aos céus, quer dizer, quando vais desta para melhor, quando bates a bota todos os idiomas são resumidos a um só.


Ricardo - as coisas que tu sabes.


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