quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Carta aberta ao Criador

 (Braveheart), da cabana das ferramentas


-Carta ao Criador-


Meu Deus,


Tranquiliza-Te. Desta vez, não venho aborrecer-Te com sugestões urgentes, como a de exterminares uma série de hipócritas por quem nutro profunda antipatia, nem fazeres crescer orelhas de burro nuns quantos que por cá pupulam que fazem da injúria e difamação o modo de lhes animar o vazio da alma. Já percebi que, de momento, não estás pr’aí virado, portanto, não insisto. Tenho pena, muita mesmo, mas não insisto. 


Mas sempre Te digo, em relação aos segundos, já que lhes distribuiste espíritos de asno, não custava nada facilitares também as orelhas. Sendo cretinos, ao menos tornavam-se pitorescos e o pagode ria. Enfim, lá deves ter as Tuas razões, certamente inefáveis e transcendentes. Curvo-me diante delas.


Também não venho incomodar-Te com requerimentos intermináveis de perdão para os meus pecados que, como bem sabes, não só não diminuem, como, com a idade, vão de vento em popa e virtualmente versam sobremaneira sobre aquele bizarríssimo mandamento com que protegeste a mulher do alheio, segundo os hebreus. 


Senhor, é mais forte do que nós: antes ser amante da mulher do alheio que amigo do alheio. Hás-de fazer-me a justiça que é um mal que faria para evitar um mal maior e que espero me seja contabilizado como atenuante por alturas do Juízo Final. 


Além do mais, como o burguês prefere ser cornudo a ser pobre, em nada contendo com a santa paz da Criação e das criaturas. Tenta compreender: enquanto nos entreteriamos com a mulher dele, não cobiçariamos a santa propriedade.


 Bem sabes, Tu que sabes tudo, como é essencial para a boa harmonia das coisas que o macho vigoroso se liberte regularmente da bicharada que lhe fervilha no pomar. Foste Tu que o criáste assim, Excelência.


 Encurralá-los, aos tais, nessa prisão claustrofóbica acarreta impreterivelmente maus humores e violentas tendências, como rugir impropérios e escaqueirar coisas.


Em suma: o sujeito perde de todo o bom feitio e torna-se religioso ou coisa pior. Ora eu, perdoar-me-ás a singularidade, prefiro ser um humilde pecador, a andar pelo mundo em certas figuras. Mas isto, ó Altíssimo, que fique aqui, hermético, entre nós. Não vá algum Espírito Santo de orelha dar com a língua nos dentes à Senhora Braveheart e, a seguir ao Carmo, cai a Trindade. Livra-Te, pois, a Ti, ó Pai Celeste, dessa queda desnecessária e a mim, criatura virtual, desse apocalipse fraticida com a minha alma gémea.


Tão pouco –alegra-Te – venho hoje molestar-te com recomendações prementes para que leves para junto de Ti –e parqueies nesse condómino ardente que tens na cave–, a corja de políticos que infesta a Terra e, sobretudo, aqui na lusa pátria. Já me descabelei o suficiente a tentar expôr-Te o meu ponto de vista sobre a prioridade desse assunto e acredito que ruminas e deliberas, em solene retiro, sobre a bondade dos meus argumentos.


Não, ó Transcendência, o que aqui me traz, nesta hora de assombro, é apenas uma pequeníssima e mirradíssima questão -uma questiúncula, melhor dizendo- enfim, uma borbulha do pensamento que, em teimosa comichão, pr’àqui me atormenta. Consiste essa verruga no seguinte: após elequentes colóquios e exaustivos seminários Contigo, a muito custo, fruto de muita oração e - porque não dizê-lo- flagelação dos instintos (sobretudo homicidas, mas não apenas), lá consegui perceber alguns pormenores mais nebulosos da Tua Criação.


 Sendo Tu absolutamente Bom, ela só podia ser absolutamente Boa, o que transposto para certa casta de dejectos, excrementos, maleitas, bactérias, vírus, répteis venenosos, insectos peçonhentos, vermes rastejantes, lombrigas, ténias, vampiros, etc, etc, me transportava a confusa estupefacção e estranheza. Era a estúpida da Razão a meter o bedelho onde não era chamada. Identificada essa disfunção da minha estrutura mental, lá consegui, com a Tua preciosa ajuda, superar o meu cepticismo e ascender a uma clarividência mais benévola e compreensiva do verdadeiro fundamento e finalidade das coisas.


Com grande surpresa minha, apaziguei o meu espírito com todas essas existências nauseabundas e repugnantes. Começei a ver com outros olhos os vermes, os micróbios, as formigas, as ratazanas, certos batráquios, as hienas, os monstros alienígenas... o Passos Coelho, o José Sócrates, o Vitorino, o Vitalino Canas, até o Ventura, imagina! E até os chineses, pasma! Grande poder Miraculoso, o Teu! 


E que esforço sobrehumano, o meu! Mas –eis a nanoquestão, Senhor -, mesmo com todo o teu Poder Miraculoso, mesmo com toda a minha titânica fibra, resta ainda uma cabra duma minudência que infecta e conspurca o Teu universo mais que perfeito: é o Paulo Rangel, ó meu Deus! e aquele puto anormal Francisco Não-sei-Quantos que parece ter brotado por partogénese anal do primeiro!... Para que é que aquilo serve?...


Aguardo a Tua sobredouta resposta em perturbada angústia.


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